THERANOS: O CRIME CONTRA MARCAS QUE GEROU MILHÕES DE DÓLARES
Deborah Portilho e Tais Capito
Revista UPpharma nº 196 – Ano 45, Março/Abril 2022, p.42-44.
Há alguns meses, todas as grandes mídias noticiavam o caso de Elizabeth Holmes – promessa do Vale do Silício no início da década de 2010 –, a bilionária e fundadora da empresa americana de biotecnologia Theranos foi condenada, em janeiro de 2022, por fraude pelo Tribunal da Califórnia.
Aos 19 anos, Elizabeth Holmes fundou a Theranos, uma empresa de biotecnologia que prometia revolucionar os exames de sangue por meio do “Edison”, um dispositivo de testagem sanguínea que se utilizava apenas de gotas de sangue para identificar os mais diversos tipos de doenças, dispensando os meios tradicionais utilizados, os quais necessitam de agulhas, seringas e tubos de sangue. Com uma ideia tão inovadora, não faltaram investidores interessados para que a empresa se desenvolvesse, o que tornou Holmes uma multimilionária aos 31 anos, sendo até considerada como a próxima “Steve Jobs” [1].
Mas por qual motivo as pessoas confiaram tanto em sua inovação?
Os investimentos em startups são feitos com base na confiança, e as tecnologias e os métodos aplicados são geralmente tratados como segredos de negócio, o que significa que o investidor não tem acesso ao que de fato é realizado, investindo apenas na ideia e na expectativa de lucro.
A ideia, no caso da Theranos, era realmente revolucionária, mas faltavam estudos que a embasassem. Foi assim que começaram a surgir os primeiros questionamentos acerca da tecnologia aplicada e, após uma matéria no The Wall Street Journal, em 2015, questionando a precisão dos resultados obtidos pelo Edison, autoridades passaram a investigar a empresa e verificaram que algumas informações fornecidas aos pacientes e, também, aos investidores não eram verdadeiras.
Dentre as inverdades apresentadas, queremos destacar o uso indevido de marcas renomadas. Com o objetivo de obter mais confiança do mercado e conseguir mais verbas para a tecnologia que estava sendo desenvolvida, Holmes enviou relatórios para seus possíveis investidores com os logotipos da Pfizer e da Schering-Plough[2], como se o “Edison” tivesse recebido a aprovação dessas empresas.
Esses relatórios com os citados logotipos– inseridos pela própria Elizabeth – foram determinantes para que o júri decidisse pela sua condenação, pois ficou comprovado que ela havia se utilizado indevidamente do prestígio e da credibilidade dessas farmacêuticas para obter a confiança dos investidores na Theranos e, consequentemente, mais investimentos. No Tribunal, investidores chegaram a afirmar que pensaram que estavam diante de relatórios emitidos pelas próprias Pfizer e Schering-Plough [3].
Após muitos questionamentos, ações judiciais e problemas com investidores, a Theranos declarou falência em 2018[4]. A sentença de Holmes ainda não foi publicada, mas a ex-multimilionária – atualmente falida – poderá pegar até 20 anos de prisão, além de ter que efetuar o pagamento de uma multa de US$250.000 (duzentos e cinquenta mil dólares) por cada acusação[5].
Para a Propriedade Industrial, o uso indevido de marca alheia registrada, quando feito por empresa de segmento distinto, ou seja, quando não há uma relação de concorrência entre ela e a titular da marca indevidamente utilizada, é caracterizado como aproveitamento parasitário. Nesses casos, costuma haver uma “carona” da empresa “parasita” na fama e no prestígio da marca “hospedeira”, sem que haja, necessariamente, risco de confusão sobre a origem dos produtos/ serviços, nem mesmo prejuízo financeiro para a marca famosa.
Contudo, há casos em que não há uma relação direta de concorrência entre as empresas, mas elas estão em um mesmo segmento ou em segmento afim e, por isso, pode ocorrer a associação entre elas pelos consumidores, como foi o caso da Theranos em relação à Pfizer e à Schering-Plough.
Nesses casos, para efeitos da lei brasileira,[6] como a Theranos não concorre com as duas farmacêuticas, esse uso indevido não seria considerado crime de concorrência desleal[7], mas sim concorrência desleal parasitária[8], para efeitos de danos morais e materiais. Nesse aspecto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou no sentido de que a utilização indevida de marca causa dano moral presumido[9], cabendo indenização, ainda que sem comprovação de qualquer prejuízo.
Com relação à questão criminal, considerando que as marcas PFIZER e SCHERING-PLOUGH[10] estão devidamente registradas no Brasil e a LPI prevê que o uso indevido de marca alheia registrada é crime, caberia, também, uma ação penal contra a própria Holmes, a qual teria que ser proposta pelo Ministério Público. De qualquer modo, Holmes dificilmente seria presa por esse crime em particular, pois a pena prevista no art. 189 da LPI é de apenas 3 meses a um ano ou multa e ela seria considerada ré primária.
Ocorre que os crimes contra as marcas foram apenas o meio pelo qual Holmes cometeu o crime de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal e, pelo Princípio da Absorção, o crime “fim” absorve o crime “meio”. Em outras palavras, o uso indevido das marcas foi apenas um instrumento para o estelionato cometido por Holmes e, portanto, ela responderia apenas por este. Essa ação também teria que ser movida pelo Ministério Público a partir da representação das vítimas (investidores) e a pena seria de um a cinco anos, além de multa e eventual perdimento dos valores ilicitamente obtidos.
Várias conclusões poderiam ser tiradas do texto acima, inclusive em relação às penas por estelionato previstas nos E.U.A. e no Brasil, mas vamos nos ater às marcas. Tanto lá quanto aqui, as marcas possuem funções que vão além de identificar produtos e serviços. Elas são uma garantia de qualidade e, também, de segurança para os consumidores, no caso, investidores. Justamente por isso, a LPI prevê que o simples uso indevido de uma marca registrada – mesmo que não esteja aposta a qualquer produto – constitui crime[11] e este caso é um bom exemplo de como se pode cometer um crime contra registro de marca, sem que haja qualquer produto ou serviço identificado pela marca indevidamente utilizada. Como se vê, infelizmente, não só de produtos piratas e falsificados vivem os contrafatores…
©Deborah Portilho* e Tais Capito** – fevereiro de 2022
Contatos: deborah.portilho@dportilho.com.br e contato@capittomarcas.com.br
* Advogada especializada na área de Propriedade Industrial, Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação e com MBA em Marketing; sócia-diretora da D.Portilho Consultoria, & Treinamento em Propriedade Intelectual.
**Advogada, com atuação na área de Propriedade Intelectual, especializada em Direito Empresarial pela PUC/SP, sócia-diretora da Capitto Marcas e Patentes Ltda.; Presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/SP – Subseção Jabaquara
[1] https://super.abril.com.br/sociedade/entenda-por-que-a-fundadora-da-theranos-foi-condenada-por-fraude/ (acesso em: 22.02.2022)
[2] Incorporada pela Merck-Sharp & Dohme em 2009.
[3] https://www.theverge.com/2021/11/23/22799756/elizabeth-holmes-pfizer-logo-confession (acesso em: 22.02.2022)
[4] https://einvestidor.estadao.com.br/negocios/elizabeth-holmes-theranos-condenada-fraude (acesso em: 22.02.2022)
[5] https://super.abril.com.br/sociedade/entenda-por-que-a-fundadora-da-theranos-foi-condenada-por-fraude/(acesso em: 22.02.2022)
[6] Lei da Propriedade Industrial nº 9.279/96 (LPI)
[7] Art. 195, III, da LPI
[8] Nos termos do art. 209 da LPI
[9] AgInt no AREsp 1427621/RJ, j. 20.04.2020
[10] Mesmo que a empresa Schering-Plough tenha sido incorporada pela Merck-Sharpe & Dohme (MSD), a marca SCHERING-PLOUGH continua registrada, tendo sido, inclusive, prorrogada em 2021 até 2031.
[11] Art. 189 da LPI