por Deborah Portilho
Revista Propriedade & Ética nº 6, ano 1, Outubro/Dezembro 2008/Janeiro 2009, p. 60-65
Apesar de o termo “reciclagem” ser comumente associado a ativos tangíveis, também existem oportunidades de reciclagem no mundo da Propriedade Intelectual.
Nesse sentido, sabe-se que grande parte das palavras existentes nos idiomas ocidentais já foi adotada como marca. Portanto, não é de se surpreender que empresas nacionais e estrangeiras, em diferentes segmentos de mercado, tenham dificuldades para encontrar palavras disponíveis e mesmo para cunhar novas palavras que possam servir de marcas para seus produtos e serviços. Entretanto, ao mesmo tempo em que publicitários “queimam seus neurônios” para criar novas marcas, existe uma abundância de marcas devidamente registradas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que simplesmente não são usadas por seus titulares.
Na verdade, esse cenário parece ser global e não apenas brasileiro. Já há alguns anos um crescente número de empresas estrangeiras vem reduzindo seus portifólios de marcas e concentrando seus investimentos e esforços em um número cada vez menor de marcas, particularmente nas “umbrella brands” e nas “house-marks”. Fusões, aquisições e reestruturações visando redução de custos e de pessoal certamente contribuíram significativamente para essa tendência. Além disso, o declínio em determinadas atividades comerciais e a crescente competição empresarial têm levado diversas empresas a focar nos seus “core business” e nas suas principais marcas, ao invés de diversificá-las.
Essa tendência parece ter tido início no final dos anos 90 e se tornou mais evidente a partir de 2000, quando empresas, tais como Unilever, Procter & Gamble e Nestlé, anunciaram que estavam reduzindo seus portifólios de marcas. Naquela época, de acordo com notícias publicadas na imprensa brasileira, a Procter & Gamble reduziu em 1/3 o número de suas marcas locais. Por seu turno, a Unilever anunciou que apenas 400 de suas 1.600 marcas seriam mantidas. As que ainda estivessem no mercado ou com potencial de serem “revividas” seriam vendidas e as restantes seriam simplesmente extintas. É importante notar que as marcas passíveis de venda são aquelas que ainda estão vivas no mercado ou as de produtos descontinuados, mas com potencial de serem revividas. As mal-sucedidas e aquelas registradas há mais de uma década e que nunca foram usadas geralmente são abandonadas.
Outra razão para essa redução de portifólios deve-se à estratégia de globalização de marcas. Como essas grandes empresas comercializam produtos no mundo todo, é conveniente que, ao invés de terem uma marca diferente para o mesmo produto, em cada país, elas tenham uma única marca global. A suíça Nestlé, por exemplo, abandonou duas de suas marcas de chocolate – LOLO e CRI ¬– em favor das marcas internacionais MILKY BAR e CRUNCH, respectivamente, que são as já adotadas nos Estados Unidos e em outros países. A popular marca de sorvetes YOPA e o iogurte CHAMBOURCY passaram a ser identificados apenas pela “house-mark” NESTLÉ e a SÃO LUIZ, que durante anos identificou a linha de biscoitos da Nestlé, foi simplesmente abolida.
Assim, por diferentes razões, especialmente a inevitável globalização, a maioria das empresas multinacionais, pelo menos no que diz respeito ao Brasil, têm tido que escolher quais marcas de seus portifólios continuarão a ser usadas e quais serão abandonadas. O problema é que essas marcas abandonadas podem permanecer vivas por anos na base de dados do INPI, dificultando o registro de marcas iguais ou semelhantes por outras empresas.
O segmento farmacêutico
Enquanto em outras áreas, fusões e aquisições levam a uma redução de marcas, isto não acontece no segmento farmacêutico. De fato, as fusões de indústrias farmacêuticas têm sido motivadas pela necessidade de crescimento e de aumento de competitividade – o que as empresas isoladamente não têm conseguido atingir em decorrência da redução geral do número de novos remédios patenteados. Como essa redução está ocorrendo com quase todas as indústrias do setor farmacêutico, elas estão se unindo para reduzir custos e aumentar vendas. Porém, diferentemente de indústrias de outras áreas, as empresas farmacêuticas não podem concentrar seus esforços nas suas “house-marks” ou “umbrella brands”, já que a maioria dos remédios deve ser identificada por marcas específicas. Além do mais, o objetivo principal por trás dessas fusões e aquisições é o aumento do número de produtos patenteados para que possa haver aumento nos lucros. Conseqüentemente, o número de marcas nesse mercado tende a aumentar e não a diminuir.
Paralelamente, todos os anos as indústrias farmacêuticas abandonam centenas de marcas. A razão principal disto é que, antes que um produto farmacêutico seja lançado no mercado, os laboratórios depositam várias marcas, na esperança de que pelo menos uma consiga ser registrada. Normalmente, vários registros acabam sendo concedidos, porém somente uma das marcas será efetivamente utilizada. As outras marcas registradas, geralmente, são mantidas por décadas para um possível uso futuro, o qual, na maioria das vezes, não ocorre.
Outra razão para a existência na base de dados do INPI de um grande número de marcas não utilizadas, independentemente do segmento, é o fato de que, no Brasil, não é necessário que se prove o uso quando da prorrogação do registro. Portanto, mesmo quando uma dada marca não está sendo utilizada, seu titular pode solicitar a prorrogação do registro correspondente e simplesmente mantê-la até o momento em que decidir abandoná-la. Conseqüentemente, a base de dados do INPI está repleta de marcas não utilizadas, de todos os segmentos de mercado.
Mas existe uma peculiaridade no Brasil em relação às marcas que não são usadas e que pertencem a indústrias farmacêuticas estrangeiras…
A dificuldade de se encontrar novas marcas para produtos farmacêuticos
Como já mencionado, empresas de diferentes segmentos estão tendo dificuldade tanto de encontrar palavras disponíveis, quanto de cunhar palavras para serem utilizadas como marcas. Na área farmacêutica a situação é ainda mais complicada, já que não é qualquer palavra existente ou criada que pode ser utilizada para identificar um produto farmacêutico, especialmente se for um produto classificado como similar pela Anvisa. Nesse aspecto, é mais fácil criar uma marca para um produto de referência original do que para os chamados produtos similares.
De fato, os produtos de referência, que são os inovadores, podem ser identificados por marcas fantasiosas, como no caso do ALLEGRA — o Fexofenadine da Aventis. Além disso, os fabricantes de produtos de referência, que normalmente são as empresas que desenvolveram a substância química, também têm a prerrogativa de adotar a Denominação Comum Brasileira (o nome do princípio ativo), como, por exemplo, a GSK que comercializa a sua Digoxina sem marca – apenas como Digoxina. Uma outra opção para estas empresas é a adoção de somente parte da Denominação Comum, como a marca CIPRO da Bayer para seu produto Ciprofloxacine.
Os medicamentos similares, entretanto, têm uma escolha muito mais limitada, em termos práticos. Apesar de esses produtos também poderem ser identificados por marcas fantasiosas, eles geralmente não as adotam. Isto porque para ganhar o reconhecimento de médicos e consumidores e também para poder competir com outros medicamentos já estabelecidos na respectiva categoria, a marca de um similar deve, de preferência, atender a uma das seguintes condições:
i) lembrar a marca do produto de referência;
ii) usar o radical do nome da substância química, de acordo com a Denominação Internacional ou Denominação Comum Brasileira para formar sua marca;
iii) lembrar o problema de saúde ou doença para qual o produto está direcionado; ou
iv) indicar qual é a finalidade terapêutica do produto.
É claro que se houvesse uma campanha maciça para o lançamento do produto similar (mesmo que restrita a médicos e profissionais da saúde), ele poderia ser identificado por uma marca totalmente nova sem relação alguma com outra marca, mas, neste caso, o alto investimento não compensaria.
Em vista do exposto e já que quase todas as combinações possíveis de radicais, prefixos e sufixos, bem como de termos descritivos, que poderiam ser usados para se formar uma nova marca já foram registradas, aos fabricantes de produtos similares restam poucas alternativas para criar suas marcas.
A tendência das indústrias farmacêuticas brasileiras de adotar marcas não utilizadas –
Muito provavelmente em vista da dificuldade de se criar novas marcas e, por vezes, até mesmo para tirar proveito da fama e do prestígio de um produto comercializado no exterior por uma outra empresa, vários laboratórios brasileiros têm preferido adotar marcas já registradas em nome de terceiros, para identificar seus produtos. Para isso, esses laboratórios procuram registros na base de dados do INPI que já tenham sido declarados extintos, ou instauram processos de caducidade com base na falta de uso da marca de interesse e, neste caso, pedem o registro dessa mesma marca em seu nome. Não é difícil se imaginar que as marcas mais interessantes para esses laboratórios nacionais sejam justamente aquelas que pertencem às empresas multinacionais.
Entretanto, é importante notar que o fato de uma dada marca não estar sendo usada no Brasil ou em qualquer outro país, não significa, necessariamente, que ela tenha sido “abandonada”, ou que não seja mais de interesse para seu titular. Muitas vezes, significa apenas que a marca não está sendo utilizada naquele país, mas pode estar sendo largamente utilizada em outros. Um exemplo que pode ser citado é o da marca DRAMAMINE, que identifica o medicamento da Pfizer/Pharmacia para prevenção e tratamento dos sintomas associados ao enjôo, a qual é amplamente utilizada nos Estados Unidos e em outros países. Esta marca foi originalmente depositada no Brasil em 1960 e foi usada aqui apenas durante um período. Em 1998, a empresa União Química Farmacêutica Nacional S/A depositou, em seu nome, um pedido de registro para a mesma marca DRAMAMINE, para identificar o mesmo tipo de produto. A então titular do registro Pharmacia & Upjohn apresentou a cabível oposição a esse pedido de registro e a União Química solicitou então o cancelamento do registro da Pharmacia & Upjohn com base na falta de uso da marca no Brasil. O pedido da União Química foi então sobrestado até a decisão da caducidade do aludido registro, que acabou por ser declarada em 2005. Entretanto, como já havia um outro registro em nome da Pfizer/Pharmacia, para a mesma marca DRAMAMINE, que havia sido depositado oito anos antes do pedido da União Química e havia sido concedido em 1992, o pedido de registro da União Química acabou sendo indeferido pelo INPI com base nesse segundo registro da Pfizer/Pharmacia. Por algum motivo, a União Química decidiu não recorrer da decisão, nem pedir a caducidade desse segundo registro.
As marcas não utilizadas da GlaxoSmithKline (GSK) são outras que estão na mira dos laboratórios brasileiros. VELAMOX, uma marca utilizada na Itália e na França pela GSK para a sua Amoxicilina 1g, foi registrada no Brasil pela Sigma Pharma e está sendo usada aqui por ela para identificar o mesmo produto. Outro exemplo é o da marca TRANIMET. O registro desta marca não foi prorrogado pela GSK e a empresa Royton Química e Farmacêutica pediu o registro para a mesma marca TRANIMET para identificar a sua Cimetidina, cujo produto de referência era o TAGAMET da GSK. Em vista da semelhança entre as marcas TAGAMET e TRANIMET e o fato de a Royton ter imitado a embalagem do TAGAMET, uma ação judicial foi movida contra a Royton para que a empresa alterasse o “trade dress” do produto e adotasse uma marca diferente, suficientemente distinta da marca TAGAMET. Devido a suas poucas chances de sucesso, a Royton concordou em alterar a marca do produto e sua embalagem e também em desistir formalmente do pedido de registro da marca perante o INPI, de modo que um acordo judicial pudesse ser firmado.
ASTRINGOSOL e BACTOPEN são dois outros exemplos de marcas que não eram mais de interesse no Brasil para a antecessora da GSK, a SmithKline Beecham, e que tiveram seus registros abandonados – o primeiro por falta de prorrogação e o segundo por falta de contestação a um pedido de caducidade. A marca ASTRINGOSOL, que ainda é largamente usada pela GSK no México e na Ásia, foi depositada perante o INPI em janeiro de 2003 pelo Laboratório Americano de Farmacoterapia e o respectivo registro foi concedido a essa empresa em abril de 2008. Já a marca BACTOPEN foi depositada pela EMS Indústria Farmacêutica Ltda. em janeiro de 2001 e o pedido de registro foi deferido pelo INPI em dezembro de 2007.
Mais uma marca que exemplifica a situação em foco é a SOMINEX, a qual identifica nos Estados Unidos um tradicional produto OTC da GSK contra a insônia. Já que a citada antecessora da GSK não tinha interesse comercial nesta marca no Brasil, a empresa EMS solicitou o registro em seu nome e atualmente comercializa um produto similar ao original SOMINEX, porém com um princípio ativo diferente do SOMINEX americano.
A marca GENIOL, que identifica um analgésico muito popular na Argentina, é mais um exemplo. Esta marca estava regularmente registrada no Brasil em nome de GSK Argentina S/A e a empresa Kley Hertz S/A pediu a caducidade do respectivo registro com base na falta de uso da marca. Simultaneamente, a Kley Hertz depositou a marca GENIOL em seu nome e a GSK apresentou então uma veemente Oposição com base na fama e no prestígio do produto GENIOL no país vizinho e na possibilidade de confusão para os consumidores, notadamente aqueles residentes nas cidades fronteiriças. Como foi negado provimento à Oposição, uma ação anulatória foi proposta pela GSK contra a decisão do INPI, a qual ainda se encontra pendente de julgamento.
As marcas acima representam apenas uma pequena amostra do grande e contínuo interesse das indústrias farmacêuticas brasileiras em adotar marcas de empresas estrangeiras, seja pela dificuldade de se criar novas marcas para medicamentos, ou simplesmente para se aproveitar da fama e do prestígio de um produto comercializado no exterior pelo titular original daquela marca.
Independentemente das razões, o fato é que, não importa se a empresa nacional pede a caducidade de um registro de uma determinada marca de interesse, ou opta por uma marca cujo registro já esteja extinto, ela terá que depositar em seu nome um pedido de registro para essa marca e esperar, atualmente, pelo menos, quatro anos para ter sua marca registrada pelo INPI. Nesse aspecto, observe-se que quatro anos é o tempo médio que o INPI ainda leva para conceder um registro, mas ele tem envidado esforços para diminuir esse tempo para dois anos.
Uma nova oportunidade de mercado –
Por razões óbvias, uma empresa não pode esperar quatro anos, ou por vezes até mais, para ter sua marca registrada; contudo, por mais de uma década, esta tem sido a realidade no Brasil. Assim, se a empresa depositar um pedido de registro para uma marca nova, ela corre o risco de ter, após mais ou menos quatro anos de espera, o pedido indeferido, tendo então que achar uma segunda marca e esperar outros quatro anos para que esse segundo pedido seja avaliado pelo INPI. Por esse motivo e pela já discutida dificuldade de se criar novas marcas, as empresas farmacêuticas brasileiras têm preferido procurar marcas “mais garantidas”, ou seja, aquelas já tenham sido registradas, mas cujos registros estejam extintos ou vulneráveis à caducidade. Nesse sentido, tendo em vista que as marcas registradas já foram, à época de seu registro, examinadas pelo INPI e, em princípio, não conflitavam/conflitam com outras existentes, elas provavelmente não encontrarão obstáculos para serem registradas novamente, mesmo que em nome de outras empresas.
Em decorrência disso, uma nova oportunidade de mercado está surgindo. Com efeito, as marcas são valiosos ativos intangíveis, que podem ser adquiridos e alienados, independentemente de qualquer outro bem da empresa. Além do mais, o registro marcário assegura a seu titular um monopólio legal sobre um sinal, seja ele um nome, uma expressão, um desenho ou a combinação desses elementos e, mesmo quando não é mais de interesse para seu titular, continua tendo valor e pode ser negociado.
Mesmo assim, existem várias empresas, especialmente multinacionais, que constantemente abandonam dezenas de marcas registradas, perdendo conseqüentemente todo o investimento feito ao longo dos anos com os depósitos e as prorrogações dos respectivos registros. Em outras palavras, enquanto existem empresas gastando tempo e dinheiro pedindo a caducidade de registros de marcas que não estão sendo usadas no Brasil, existem outras perdendo dinheiro com o abandono dessas marcas que não são mais de seu interesse. Não seria melhor se ambos os lados pudessem lucrar com essa situação?
Supondo que a resposta seja afirmativa, como deve ser, então a solução é muito simples: ao invés de abandonar as marcas que não são mais de interesse, seus titulares poderiam colocá-las à venda, possivelmente em um site especializado (um banco de marcas). Se uma marca for negociada, um contrato de cessão do respectivo registro para a parte interessada será então submetido ao INPI para a necessária averbação. Se, entretanto, não houver um comprador, o titular do registro poderá simplesmente abandoná-lo.
Uma outra vantagem de se ter um banco de marcas é a possível redução das tentativas de terceiros de registrar marcas que não estejam sendo utilizadas no Brasil, mas que ainda sejam de interesse para seus titulares. De fato, se houver uma lista de marcas a serem negociadas, como corolário lógico, o fato de uma dada marca não estar na lista é uma indicação clara de que o seu titular deseja mantê-la, mesmo que ela não esteja sendo utilizada naquele país em particular. Portanto, a existência de tal lista é uma garantia para a parte compradora de que a marca escolhida está livre para ser utilizada e uma maneira que o titular tem de indicar seu interesse em manter os registros das marcas que não estão sendo utilizadas.
O fato é que, não importa sob qual ângulo a situação seja analisada, não há qualquer desvantagem para as partes envolvidas – somente vantagens. Com efeito, avaliando a questão sob os aspectos de marketing, financeiro e legal, chega-se à conclusão que a “reciclagem” de marcas é perfeitamente viável, factível e benéfica para todas as partes envolvidas, sendo ainda um procedimento que pode ser adotado não apenas na área farmacêutica, mas em todos os segmentos de mercado.